
- Sim, você. Não tem vergonha na cara? Não há dia que não me sinta invadida na minha integridade, por esses olhares estranhos e desconcertantes. De cada vez que aqui passo é um sacrifício. Já tem idade para zelar pelos netinhos. Até parece que nunca viu uma mulher...
- Por favor, peço-lhe, não me tome por maníaco. Só quero aprender a conhecer as pessoas que por aqui passam. Saiba, menina, que é uma honra poder dirigir-lhe a palavra. Sinto-me privilegiado, na idade que tenho, sentir que reconhecem que existo, que também mereço atenção... - desabafou o velho, ciente de que a docilidade das suas palavras alterariam o estado de ânimo da rapariga.
- Bom... desta vez passa, mas da próxima vez que isto...
- Não, não vai acontecer! Prometo que de ora em diante não me permitirei ao prazer das 7 da tarde. Já a conheço e isso é tudo. Dá-me licença que desça para lhe apresentar pessoalmente as minhas sinceras desculpas?
- Só tem é de...! - a proveitou para comprar um gelado no PH, enquanto o velho se despachava na descida.
- Quem é você? Como se chama? - arremessou imediatamente num primeiro cara a cara.
- Homem. Chamam-me Homem - retorquiu o velho.

- De que fala? A que se refere? Porquê eu?
- A menina, porque também faz parte de um todo. Sem você o todo seria impossível. Admiro as partes enquanto membros de um todo. Fora disso não existe explicação. Eis a justificação da minha atitude. Contudo, porque não se resignou a disparar contra mim e a fugir como qualquer outro, as minhas sinceras desculpas - e afastou-se, fazendo uma vénia, própria de um cavalheiro entre mil.
- Está desculpado, mas agora não fuja. Acordou a minha curiosidade. Não lhe deram nome? Não foi baptizado?
- Não sei. Talvez sim, talvez não. Até prova em contrário, o mais certo é que se tenham esquecido. Mas isso pertence ao passado... E a menina, qual é a sua graça?
- A minha quê? Graça? Essa é boa... Mariana... Mariana Sanchez!
Contrariar por contrariar
Mariana herdara o nome da mãe, o feitio do pai e uma aprazível fortuna que lhe permitia deitar-se de papo para o ar até ao fim da sua vida. Dona de um carácter rigorosamente impulsivo e de um irritante mau perder, entregava-se de corpo e alma àquela que só poderia ser a sua verdadeira profissão.
Trabalhava por prazer, com o prazer de quem ama, porque gostava do que fazia e não havia dinheiro que substituísse essa felicidade. Era rica, mas encarregava-se de não parecer; muito bonita, mas fazia por não entender; como se sentia só, trabalhava para esquecer.

Não sentia quaisquer remorsos por ter fugido de casa, no dia em que recebeu a pior notícia que alguém pode receber no dia do aniversário: a morte dos pais, vítimas de um trágico acidente de viação na auto-estrada do norte. Desde então abominava certas circuntâncias da vida, porque o ódio que ganhou ao pai fê-la odiar todos os homens. Responsabilizava-o pela morte da sua maior amiga, a mãe, por causa da tresloucada paixão que nutria pelas grandes velocidades. Condenava os 200 KM/h que os separou para a eternidade...
Mariana trabalhava num semanário, A Solução, que se dedicadava à divulgação e resolução de situações embaraçosas da nação: injúrias e falsas acusações, raptos e adopções, pilhagens e assassinatos, corrupção e litigações, adultérios e sexualismos, chantagens e ofertas paradisíacas... Enfim, tudo o que fizesse circular dinheiro e proporcionasse uma tiragem superior à média concorrencial.
Adorava contrariar por contrariar, porque só assim, pensava ela, podia desvendar a verdade realmente crua dos acontecimentos. Não vergava perante a fanfarronagem dos discursos mais arrojados ou da artificialidade retórica de um qualquer Grão-Literado. Repugnava a hipócrisia e a simulação dos sentimentos, quando o que contava eram as acções, a realização das promessas e a convicção de um trabalho bem feito.
As tardes, semelhantes às manhãs, eram o dopping desta frenética rapariga, que só parava para dormir ou saborear um gelado. Herdara-o tão talentosamente do pai, que nem se apercebia da velocidade a que pensava, escrevia, contrariava ou discutia.
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